porque ainda respiro, porque o sangue circula pelo meu corpo, porque meus cabelos não pararam de crescer, porque minhas unhas não pararam de crescer, porque fecho os olhos e durmo, porque sonho com paisagens desérticas e com um poema de Rimbaud, porque sonho com mulheres sem rosto e pássaros soturnos, porque abro os olhos e desperto, porque me levanto da cama e ando por essa casa estranha e tão familiar, porque meu corpo obedece aos comandos do meu cérebro, porque bebo chá, porque sinto frio, porque saio e caminho pelas ruas de Paris, porque o vento gelado no rosto me agrada, porque o ar frio arde nas narinas e acende os pulmões, porque respiro ainda, e sinto prazer ao respirar, prazer ao caminhar pelas ruas de qualquer cidade, em olhar os rostos de pessoas desconhecidas, em beber chá, em acordar, em dormir e sonhar, porque sinto prazer e júbilo por estar vivo, por isso escrevo esse texto, por isso esse texto existe, e insiste, débil, inútil atestado de vida.
Europa
Aqui se passa a mão no tempo
- Do alto destas pirâmides de vidro,
quantos séculos nos contemplarão?
Aqui, o tempo se pega com a mão.
..... escrito em Paris, dez. de 2004 ....
Escrevo de joelhos e nao ha papel nao ha caneta escrevo digitando teclas e observo na tela as palavras que componho letra a letra e fosse papel e tinta e fosse tela e oleo fosse madeira e canivete ou faca talho cunha fosse ferro em brasa fosse espelho e diamante minhas maos nao tocam mas eu transformo a materia imprimo na linguagem a ideia faço a forma imperfeita faço a metamorfose formosa seja verso seja prosa meto a mao meto o pe e o pau como sem contato meto a fala e faço a faca sem lamina meto o palo seco eu escrevo de joelhos ou sentado na cadeira escrevo em pe e danço e salto e urro so para dizer que sou humano e estou vivo sobre esse planeta de teto azul sobre essa esfera imensa cheia de temperaturas escrevo para dizer que hoje eu vi a neve ela caiu floco a floco confetes claros num carnaval silente e branco escrevo para dizer que caminhei sobre o gelo cruzei pontes sobre o Sena e vi a musa de um poema antigo vi o poema vivo o sonho perdido reencontrado em carne pele e sorriso e meu coraçao ligeiro tocou mesmo sem soar tocou um dois tocou um compasso binario meu coraçao ligeiro coraçao samba cançao, samba enredo de estar vivo
do caderno de viagem
é só um rio
que passa largo
debaixo da ponte
é só a lua
acesa no céu
sobre o horizonte
é só o vento
o movimento das pessoas
na cidade estrangeira
no meio da noite
porque então o homem
que testemunha esse instante
de súbito se põe tão comovido?
.
poema de 2008
que enxergo no espelho?
ou sou o menino que vivo
esquivo, assustado, com medo
tal qual o galo de Gullar,
que faço entre as coisas,
de que me defendo?
sou um professor de meia idade
com inclinações artísticas
(como meus pais e minhas avós)
ou vivo centelha
em cada sonho que tive
nas idéias que fiz
em tudo quanto esbocei?
Um poema não se faz
apenas com interrogações.
O chá que bebo, eloqüente,
afirma o calor.
poema inédito, de 1998
Virgínia
O avião voa
sobre o Atlântico.
Olho pro céu
nenhum pássaro
passa sob o azul.
Em quem pensa Virgínia
nesta tarde clara?
Seu sorriso branco
não encontra nuvem
que o corresponda.
Onda após onda
o oceano acena para ela
que nem vê, distraída
na janela.
O pensamento voa
sobre o Atlântico.
Olhos no céu
coração suspenso
entre continentes.
Em quem pensa Virgínia
nesta tarde clara?
mar quebrando nas pedras vento no corpo
vento na pele vento constante que abraça tudo
maresia o imenso halo em volta da lua
lembra um olho imenso colado no céu
olho redondíssimo de pupila branca
as vozes das pessoas ao redor a música
do show ao longe os pés caminham
deixam para trás a areia e seguem
em direção ao oceano agora pisam
o chão duro do quebra-mar
agora a pedra sólida
contra a qual o mar arrebenta
é apenas uma noite em Fortaleza
mas o poeta se vê comovido com a existência e quer cantar
quer cantá-la e a canção de Caymmi vem como um sopro
um vento uma oração para a noite
melodia ao ar a intensidade do instante
reverbera no tempo simples e pleno
às vezes viver é tão bom e leve
"ó vento que faz cantiga nas folhas do alto do coqueiral
ó vento que ondula as águas eu nunca tive saudade igual..."