poema de 2004
Meu avô de pé, sólido, da janela
olha os amplos pastos verdes
e as brandas manchas brancas sobre eles.
O gado nelore à distância caminha e rumina capim.
Meu avô, na sala da casa da infância,
em outro tempo, ecoa agora em mim.
Estou em pé, palmas das mãos sobre os rins.
Repito seu gesto, meus olhos sobre outro pasto.
Lagoa, cidade, montanhas, céu estrelado.
Na fazenda, mais estrelas se mostravam.
Mas não as incontáveis luzinhas da cidade,
dos inúmeros edifícios, dos presépios das favelas.
Vestígios de vida na noite urbana.
A cidade do Rio de Janeiro, fazenda que guardo
tal qual meu avô fazia com suas terras.
la visión de Ivana
quiero dormir diez mil horas
entre el agua e la piedra
estaba mi cabeza prensada
un instante y la mirada se aleja
mi cuerpo chiquito
entre las dos fuerzas
y la voz que truena:
quiero dormir diez mil horas
Que pessoa é essa
que peçonha é essa
que nem sonha nem vigília
vive o pesadelo permanente
voragem silente
pessoa-poço, precipício
abismo fosso escuro
turvo e sujo e fétido
treva sob a treva
escamoteada em forma humana
de segunda a segunda
de domingo a domingo
todo dia da semana
fede esse inferno
epiderme de serpente
o veneno todo na boca
numa bolsa atrás do dentes
no ventre o verme
da discórdia permanente
fezes, fecaloma
pedra jamais expelida
que peçonha é essa
que pessoa é essa
lauluks muutuda
ja lihtsalt minna
siseneda läbi taskuraadiote,
läbi naiste kõrvaklappide
ning inimeste luid kiigutada.
Ah, milline soov alasti lamada,
lihtsalt niisama, suvalisel pilvel
vihmaks muutuda,
sinna-tänna kukkuda,
puude tippe niisutada,
inimeste päid värskendada,
end hüljata,
õhku pesta
ja järve kohal tilkuda.
marulho
na imensa massa de água
verde translúcida
os sons são distantes
é só o sol, o céu
o mar
e eu e ela imersos
no mundo das coisas sem palavra
das gaivotas, das pedras
e dos peixes
marulho
e não há palavra aqui
nem verso, nem canção
só eu e ela imersos
na imensa massa de água salgada
sob a luz do sol
e o azul do céu sem nuvens
texto de 2004
algo que se acumula com o passar do tempo e que não se vê. algo próximo ao desprezível, mas que faz toda diferença. espécie de sopro, fôlego, brisa leve que quase não se sente. é mais ou menos assim que entendo a poesia. um sentido no sentir a vida. o segredo contado pelo velho Domingos, Vô Mingo, numa praça do Grajaú, pouco antes de morrer. a transmissão de poeta a poeta, da boca ao ouvido, do verso ao olho. é o susto, estranhamento ou encantamento súbito. a experiência do sutil, do subjetivo do humano, transmitido em palavra, isso é poesia.
é um rito
é um tiro
incerto
é um vago
aperto
num lugar bem dentro
de alguém bem longe
é um dito
é um mito
absurdo
vagar num
deserto
outro lugar bem longe
imagem vem de dentro
e acaba onde:
incerto ser inserto
que me olha tão distante
e está tão perto
miragem que em mim mira
deste deserto
eu tento tanto tântalo sonhar
mas desperto
Karina e o mar
Depois perguntei:
— funcionou, Karina?
Ela:
— funcionou. Deu pra ver o mar todinho.
Sua amiga pretinha corrigiu:
— que mar? Isso é piscina.
E Karina:
— mas pode chamar de mar.
publicado no Fórum Virtual de Literatura e Teatro da UFRJ
Eles eram muitos cavalos,
ao longo dessas grandes serras,
das crinas abertas ao vento,
a galope entre águas e pedras.
Eles eram muitos cavalos,
donos dos ares e das ervas
com tranqüilos olhos macios,
habituados às densas névoas,
aos verdes prados ondulosos,
às encostas de árduas arestas,
à cor das auroras nas nuvens,
ao tempo de ipês e quaresmas.
Cecília Meirelles
(do Romanceiro da Inconfidência)
nadar nadar nadar
nadar como um peixe
no meio do mar
nadar nadar nadar
seguir o impulso
mais puro de vida
pela alegria simples
de estar vivo
nadar,
nadar sempre
sem pressa
com o vigor todo do corpo
nadar
nadar imerso no instante
mergulhado no êxtase
de estar vivo
neste planeta
nadar nadar nadar
nadar como um peixe
no meio do mar
nadar, nadar
sentindo tudo, muito
nadar
que fora dessa massa d’água
não há nada
.
outra nota de 2008
*
Lançar um livro não é
atirar uma garrafa ao mar.
Lançar um livro não é atender ao grito de socorro
surgido do seio
da selva de pedra.
Lançar um livro
não é apenas mais um aceno
ao ímpeto humano
de narrar.
Lançar um livro
é ato subversivo
é afirmação inconteste de que existo, estou vivo
e me resta alguma esperança na humanidade.
Por isso, talvez
lançar um livro
seja algo quixotesco,
policárpico,
macunaímico.
Mas ainda assim
e mais que tudo
lançar um livro
é um resoluto e indiscutível
anti-suicídio.
*
nota de 2008
.
.
Estou prestes a povoar o mundo
com mais um livro
mais um título
em tiragem de quinhentos exemplares
(escrevo por extenso para estender o número)
Atitude – publicar – que sempre questionei.
Já pensei em copo d’água jogado no oceano
depois em garrafa lançada ao mar
Mas agora estou convicto
mar ao mar
água à água.
..
.
Poema do nadador
Nada, nadador!
A água é mansa, a água é doida,
aqui é fria, ali é morna,
a água e fêmea.
Nada, nadador!
A água sobe, a água desce,
a água é mansa, a água é doida.
Nada, nadador!
A água te lambe, a água te abraça
a água te leva, a água te mata.
Nada, nadador!
Senão, que restara de ti, nadador?
Nada, nadador.
porque ainda respiro, porque o sangue circula pelo meu corpo, porque meus cabelos não pararam de crescer, porque minhas unhas não pararam de crescer, porque fecho os olhos e durmo, porque sonho com paisagens desérticas e com um poema de Rimbaud, porque sonho com mulheres sem rosto e pássaros soturnos, porque abro os olhos e desperto, porque me levanto da cama e ando por essa casa estranha e tão familiar, porque meu corpo obedece aos comandos do meu cérebro, porque bebo chá, porque sinto frio, porque saio e caminho pelas ruas de Paris, porque o vento gelado no rosto me agrada, porque o ar frio arde nas narinas e acende os pulmões, porque respiro ainda, e sinto prazer ao respirar, prazer ao caminhar pelas ruas de qualquer cidade, em olhar os rostos de pessoas desconhecidas, em beber chá, em acordar, em dormir e sonhar, porque sinto prazer e júbilo por estar vivo, por isso escrevo esse texto, por isso esse texto existe, e insiste, débil, inútil atestado de vida.
Europa
Aqui se passa a mão no tempo
- Do alto destas pirâmides de vidro,
quantos séculos nos contemplarão?
Aqui, o tempo se pega com a mão.
..... escrito em Paris, dez. de 2004 ....
Escrevo de joelhos e nao ha papel nao ha caneta escrevo digitando teclas e observo na tela as palavras que componho letra a letra e fosse papel e tinta e fosse tela e oleo fosse madeira e canivete ou faca talho cunha fosse ferro em brasa fosse espelho e diamante minhas maos nao tocam mas eu transformo a materia imprimo na linguagem a ideia faço a forma imperfeita faço a metamorfose formosa seja verso seja prosa meto a mao meto o pe e o pau como sem contato meto a fala e faço a faca sem lamina meto o palo seco eu escrevo de joelhos ou sentado na cadeira escrevo em pe e danço e salto e urro so para dizer que sou humano e estou vivo sobre esse planeta de teto azul sobre essa esfera imensa cheia de temperaturas escrevo para dizer que hoje eu vi a neve ela caiu floco a floco confetes claros num carnaval silente e branco escrevo para dizer que caminhei sobre o gelo cruzei pontes sobre o Sena e vi a musa de um poema antigo vi o poema vivo o sonho perdido reencontrado em carne pele e sorriso e meu coraçao ligeiro tocou mesmo sem soar tocou um dois tocou um compasso binario meu coraçao ligeiro coraçao samba cançao, samba enredo de estar vivo
do caderno de viagem
é só um rio
que passa largo
debaixo da ponte
é só a lua
acesa no céu
sobre o horizonte
é só o vento
o movimento das pessoas
na cidade estrangeira
no meio da noite
porque então o homem
que testemunha esse instante
de súbito se põe tão comovido?
.
poema de 2008
que enxergo no espelho?
ou sou o menino que vivo
esquivo, assustado, com medo
tal qual o galo de Gullar,
que faço entre as coisas,
de que me defendo?
sou um professor de meia idade
com inclinações artísticas
(como meus pais e minhas avós)
ou vivo centelha
em cada sonho que tive
nas idéias que fiz
em tudo quanto esbocei?
Um poema não se faz
apenas com interrogações.
O chá que bebo, eloqüente,
afirma o calor.
poema inédito, de 1998
Virgínia
O avião voa
sobre o Atlântico.
Olho pro céu
nenhum pássaro
passa sob o azul.
Em quem pensa Virgínia
nesta tarde clara?
Seu sorriso branco
não encontra nuvem
que o corresponda.
Onda após onda
o oceano acena para ela
que nem vê, distraída
na janela.
O pensamento voa
sobre o Atlântico.
Olhos no céu
coração suspenso
entre continentes.
Em quem pensa Virgínia
nesta tarde clara?
mar quebrando nas pedras vento no corpo
vento na pele vento constante que abraça tudo
maresia o imenso halo em volta da lua
lembra um olho imenso colado no céu
olho redondíssimo de pupila branca
as vozes das pessoas ao redor a música
do show ao longe os pés caminham
deixam para trás a areia e seguem
em direção ao oceano agora pisam
o chão duro do quebra-mar
agora a pedra sólida
contra a qual o mar arrebenta
é apenas uma noite em Fortaleza
mas o poeta se vê comovido com a existência e quer cantar
quer cantá-la e a canção de Caymmi vem como um sopro
um vento uma oração para a noite
melodia ao ar a intensidade do instante
reverbera no tempo simples e pleno
às vezes viver é tão bom e leve
"ó vento que faz cantiga nas folhas do alto do coqueiral
ó vento que ondula as águas eu nunca tive saudade igual..."